5 de abril de 2010

UM EXAME DE VISTA

Ela estava na sala de espera do oftalmologista do Detran, esperando sua vez de ser examinada para a renovação de sua carteira de motorista.
Nunca foi dessas mulheres que se realizam atrás de um volante. Pelo contrário, Já tinha mais de 40 anos quando literalmente “empurrada” pelo marido, entrou numa escola de motorista. Enquanto as pessoas normalmente levam 15 dias para se habilitarem ao exame, ela levou 30 dias.
Nos 12 ou 15 anos em que dirigiu nunca se sentiu à vontade. Sempre tensa, preocupada.
Ouvia piadas dos familiares, com os apelidos ora de tartaruga, ora de Fittipaldi...
Não dava bola.
O seu automóvel, um Fusquinha, era parte da família, um amigo com o qual até conversava, que nem acontecia naquele filme Se o meu Fusca falasse...
Mas voltemos à vaca fria, ou seja, ao exame que estava prestes a realizar-se.
De repente, a funcionária que preenchia a sua ficha a chamou e perguntou:
-“A senhora é doadora de órgãos? Porque, se é, essa informação precisa constar de sua carteira de motorista. Agora é lei.”
Pensou.
-“Tudo bem, pode colocar aí que sou doadora.”
Voltou pro seu lugar.
E começou a fazer uma imagem (como nas histórias em quadrinhos) do diálogo entre seu filho e o médico, após seu falecimento.
-“A sua falecida mãe era doadora de órgãos, consta aqui de sua carteira de motorista. O senhor sabia disso?”
-“Sim, senhor”,
-“Bem, então, podemos aproveitar o coração...”
-Olha doutor, o coração não vai adiantar, não...Ela sofria de hipertrofia miocárdica grave, congênita, é um milagre que tenha sobrevivido tanto...”
-Bom... E os rins? Estes vamos poder aproveitar, não? Serão dois pacientes beneficiados...”
- Hum... o senhor é que vai avaliar, doutor. Ela já teve tantos cálculos renais que, se fossem diamantes, a família estava rica...”
- “Ah... assim sendo...E os pulmões?”
-“Olha doutor, teve asma por tantos anos, a coitada...”
-“Ah, mas nos restam as córneas! Os olhos estão em perfeito estado, não?”
“Que nada, doutor, além de usar óculos com lentes tão grossas que nem fundo de garrafa, ainda operou, de catarata, recentemente, o olho direito...”
Nessa altura da “conversa”, o filho movido por uma pontinha de remorso, sentiu-se na obrigação de dizer que a mãe (por amor de Deus...) havia ido para a Grande Viagem com alguma coisa saudável. E apressou-se em dizer:
-“ Boa mesmo, doutor, era a cabeça dela... Se já existisse transplante de cérebro, isto sim, alguém poderia aproveitar bem...”
O médico, desencantado, se afasta.
E ela, pensando na cara do filho, após esse diálogo, estava às gargalhadas...
Os outros candidatos a futuros motoristas, sentados na sala, esperando sua vez, a olhavam espantados.
O médico a chamou para os testes. E, ao levantar-se e passar para a sala do exame, ouvia os sussurros, os comentários:
-“Esta biruta vai poder dirigir?! É um absurdo! Está se vendo que não bate bem da cabeça! Olha só como ri sozinha!”
Thelma Maria Azevedo
Antologia “Clepsidra”, da AFESL, 2007

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