26 de março de 2010

O RIO DOCE

Eu o conheci na década de 40.
Fui de trem, pela primeira vez viajando sozinha, sem a companhia de meus pais, passar as férias grandes (como eram conhecidas as férias de fim de ano) em Governador Valadares, onde moravam meus primos.
Não sei se pelo fato de ter sido a primeira vez em que eu saía sozinha, sentindo-me muito independente, não sei se pelo carinho daqueles parentes, por conhecer Governador Valadares numa época em que “a escola era risonha e franca”... ou pelo Rio Doce.... Acho que talvez um somatório de todas estas coisas, faziam o meu coração bater mais forte, na expectativa de uma aventura a ser vivida, como disse, pela primeira vez ...
Nos períodos de férias, afluíam a Valadares todos os jovens que estudavam fora daquela cidade. A maior parte, nas cidades de Juiz de Fora e Belo Horizonte.
A cidade ganhava toda uma animação, uma efervescência maior, provocadas pelos jovens estudantes.
Os clubes recreativos, entre os quais o Minas Clube e o Ilusão, ofereciam muitos atrativos, competições de jogos de vôlei, futebol, pingue-pongue...Havia os bailes domingueiros, onde cada jovem já escolhia o seu parceiro para as próximas danças...As vezes, até um namorico surgia...
Também existia uma praça de esportes, ponto de reunião da moçada, para andar de bicicleta ou simplesmente conversar.
.E havia as serestas, em noite de lua cheia, à beira do rio Doce. Era maravilhoso ver a lua surgir e traçar seu caminho de prata sobre as águas tranqüilas do rio. Íamos em turmas, com violões, um repertório de músicas românticas, hoje consideradas bregas, e ali, ficávamos, vendo o rio Doce correr imponente, suas águas ainda límpidas, em direção ao mar...Cada vez mais belo, mais forte sem peias e sem prisão... Era um rio bravio, ao mesmo tempo singelo. De repente, acelerava seu ritmo, e abrupto, a gemer, a rugir, resvalava na Cachoeira da Fumaça...
Rio “é um caminho que anda”, já disse o poeta. Nascendo no município de Ressaquinha, na serra da Mantiqueira, no Estado de Minas Gerais, percorre 853 km antes de seu encontro com o oceano Atlântico, já em território capixaba, na povoação de Regência, no município de Linhares.
Neste seu percurso, banha 228 cidades nos dois Estados: de Minas Gerais e Espírito Santo. Teve importância decisiva na conquista destes dois Estados, pelos europeus.
No século 18, por ele penetraram os sertanistas e exploradores, como Borba Gato. Já no século 19, foi a vez dos pesquisadores.
No século 20, o seu vale foi rasgado pela Estrada de Ferro Vitória a Minas que impulsionou o crescimento das diversas regiões localizadas às suas margens. O rio Doce passava com pressa rumo ao seu destino.
Eu refiz por uns quatro anos, esta jornada em busca de Governador Valadares, da Praça de Esportes, do rio Doce...
A vida me levou por caminhos outros, e perdi o rio Doce de vista.
Quando cursava Geografia, na UFES, fomos com um professor conhecer a sua foz, em Regência. Era um belo espetáculo ver suas águas encontrando-se, finalmente, com o oceano, seu destino final.
Muitos anos depois, mas muitos mesmo, voltei a Governador Valadares. Naquele período já havia uma linha de ônibus para lá. E qual não foi o meu choque, quando vi o rio Doce, em determinados trechos, quase seco! Apenas um manilhamento conduzia um filete daquele que foi um rio tão largo, tão imponente! Em cima dele, construíram um arremedo de estrada e pasma, vi o nosso ônibus atravessar para o outro lado do rio...
Meu coração doeu. Das suas margens, desaparecera toda a mata ciliar, que protegia o rio do assoreamento... A mão do homem havia interferido para tirar a proteção que impedia o desmoronamento de suas barrancas... Andaram ali, sem leis, dissolutos, o fogo e a serra elétrica tombando as árvores, deixando ruínas por todos os lados.
Em outros trechos, o rio aparecia, com um pouco mais de água, deixando ver bancos de areia, verdadeiras ilhas salpicadas em seu leito...
Nunca mais voltei a Valadares. Não mais avistei o rio Doce. Não sei o que tem sido feito para a recuperação daquele que foi um rio tão bonito e importante para a economia das cidades por ele percorridas.
Aqui, porém, rendo minha homenagem ao rio Doce e deixo e minha enorme saudade àquele que encantou a fase mais bonita de minha vida, a adolescência.
Thelma Maria Azevedo
“TEMPO DAS ÁGUAS” - Antologia da AFESL - 2008

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